Sim, sou uma errante. Viajo na normalidade entre os ciclos lunares. Mas mergulho num poço escuro e incômodo durante alguns dias do mês, como a menstruação feminina. É quando me ergo sobre duas pernas e ando como os humanos. Estranho mundo, o deles. Era para lá que eu ia nos períodos em que a mutação me permitia cruzar o limite entre a besta e o homem, o grande predador. Perto dele, eu e os outros bichos éramos um nada. Comemos a carne e lambemos o sangue. Mas o homem toma a alma.
Eu me cobria com um vestido de algodão azul e penteava os longos cabelos negros quando a hora da mutação chegava. Depois ficava na beira da estrada, esperando o primeiro homem se aproximar. O cheiro de sexo permanecia impregnado nos meus pêlos, os poucos que sobravam depois da mutação. Logo os humanos chegavam, olhando de lado e atentando para tudo ao redor. A minha aparência os agradava. Eram ariscos. Matreiros. Pegavam na minha mão, diziam coisas com a voz suave. Traziam doces que compravam na vendinha da beira da estrada. Gostavam de passar os dedos entre os meus cabelos. Queriam beijar. Em troca, compravam a carne de que gosto. Arranjavam a cerveja que eu bebericava, morna. Fazíamos sexo. Depois, iam embora para nunca mais voltar.
Faz um tempo, encontrei um homem diferente. Ele tinha olhos de um negror intenso, como as noites de lua nova na floresta. A pele tinha a cor dos doces que chamam de pé-de-moleque. Era bom o seu cheiro de suor. Mordi as suas costas e lambi a sua mão. Ele riu e me chamou de nomes. Alguns, ternos, outros, cheios de malícia e desejo. Eu, que nada possuía, chamei-o apenas de meu. Meu homem. Aninhei-me sobre o sol glorioso que ele trazia tatuado no peito. Em seus braços, dormi uma noite inteira sem sonhar com a mata, o barulho da água do riacho e dos bichos da floresta. Ele falou-me dos seus desejos. Do amanhã e do depois de amanhã. Falou de partir para uma vida além da estrada, para a cidade grande, onde meus olhos não podiam alcançar. Pegou a minha mão e a beijou. Por ele, eu quase esqueci que era uma errante e que a hora de partir ia chegar, um dia.
Como sempre, o ciclo mensal acabou junto com a lua cheia. Pela primeira vez, chorei quando as minhas quatro patas voltaram a tocar no chão. Deixei o meu homem. E voltei para a floresta.
Do meu esconderijo, ouvi-o chamar por mim. Durante dias, senti a sua presença na parte menos densa da mata, rondando e procurando. Uivava como um animal doente. Suplicava pela volta do amor perdido. Mas pouco a pouco o seu cheiro foi se tornando mais fraco, até desaparecer por completo entre o odor das folhas ao vento, dos insetos e da chuva. E eu voltei a correr pela mata à noite, junto com outros irmãos selvagens. Eles não eram errantes como eu. Não se entristeciam com a lembrança do sol tatuado num peito moreno. Não tinham saudades de algo que não voltava mais.
Não retornei à estrada nas noites de lua cheia. Embrenhei-me mais e mais fundo na floresta. Fiquei muito tempo sem me aproximar dos homens. Acasalei-me com um grande lobo vermelho e fiquei prenha. Nasceram sete pequenos errantes como eu.
No entanto, eu não alcançava a paz, a noite bem dormida, o prazer de correr na escuridão sem luar. A imagem nebulosa do homem da pele cor de terra assombrava a minha mente. Fazia a minha alma doer. Foi por isso que, mais uma vez, resolvi colocar o vestido azul, já roto e gasto pelo tempo, e caminhar com os dois pés até a estrada dos homens.
A paisagem mudara. Havia muitos carros, as minhas narinas ressentiam-se da fumaça que expeliam. A vendinha na beira da estrada continuava ali, cheia como sempre. Eu estava assustada. Havia perdido a familiaridade com os homens, seus objetos, sua língua. Mas queria, acima de tudo, reencontrar o meu homem. Enchi-me de coragem e me aproximei da porta estreita e iluminada. Entrei no espaço apertado e caminhei entre velhas mesinhas de metal.
O cheiro de urina velha pairava no ar, misturado com odores de cerveja, cachaça e fritura. Logo as conversas cessaram. Olhos hostis me observavam, atentos. Eu farejava o ar com ansiedade. Procurava pelo cheiro dele. Não. O meu homem não estava por perto. Fiquei com medo. E se ele houvesse partido para longe? Para a cidade além do horizonte? Machos cheios de desejo se cutucavam uns aos outros. A minha roupa em farrapos os incomodava. O meu corpo vigoroso e saudável os excitava. Um deles grunhiu algo na minha direção. Depois um outro. Começaram a se levantar devagar, os olhos fixos em mim.
Então, um homem velho se ergueu e disse algo em minha defesa, acalmando-os. Mas aquele que falara primeiro continuava disposto a me atacar. Ele saiu do seu canto e avançou na minha direção, mas o velho acertou-o com a bengala, abrindo uma fenda na sua testa. O sangue jorrou, abrindo o dique que continha os ânimos. Os amigos do ferido arremeteram e surraram o homem velho, apesar das minhas súplicas. Quando a noite terminou, eu estava na sarjeta, mergulhada numa poça de lama, sangue e lixo. Ao meu lado, jazia o velho ferido. No seu peito, sob a camisa entreaberta, havia um sol tatuado, quase apagado. Eu havia reencontrado o meu homem. Antes, só sentia o forte odor da cachaça. Agora, no seu sangue, eu percebia um resquício do cheiro antigo, saudoso, do homem viril que já não existia mais. O tempo havia passado muito rápido para ele. Aprendi que o tempo para os errantes andava mais devagar.
Recolhi o meu homem, envelhecido e doente, e o levei até o seu barraco humilde. Ele não me reconheceu em nenhum momento, para ele eu era apenas uma prostituta grata pelo seu último gesto de cavalheiro. Meu pobre homem. Seus dentes estavam podres e fracos. Sua pele flácida era seca como um pano velho. Uma doença ruim corroía o seu estômago e o atormentava com fortes dores. Ele admitiu, sorrindo com a boca ferida, que estava à beira da morte. Jamais deixara a estrada e o seu lugar na mesa da vendinha, onde prestava pequenos serviços durante o dia e passava as noites bebendo. O sonho de conquistar o futuro e partir para a cidade grande havia murchado junto com seu corpo.
No segundo dia, o meu homem teve uma surpresa. Fui até a sua cama e enfiei-me sob as cobertas. Sorri ao notar num homem tão velho um resto de pudor ao expor-se para uma mulher jovem. Mas ele entendeu que eu o queria. E que ele merecia o meu querer. Aceitou as minhas carícias, enternecido. Em alguns momentos quedou-se, pensativo, talvez tocado por alguma lembrança remota de uma outra mulher que amou. Uma mulher de vestido azul de algodão que desapareceu certa noite, junto com a lua cheia. Bebemos cerveja. Ofereci-lhe comida, que arranjei com outros homens na estrada. Depois ele adormeceu, feliz.
No terceiro dia conversamos até o sol se pôr. O meu homem estava alegre, queria sair daquele lugarejo, partir para onde os olhos não alcançavam, recomeçar a sua vida. Mas as dores que o prostravam diziam que não, que ele não duraria mais do que algumas poucas horas. E a cara branca no céu diminuía, avisando que já era hora de uma errante voltar para a floresta. Eu precisava partir. O tempo passava rápido para nós dois.
Mas não fui embora. Permaneci ao seu lado. Durante a madrugada, a transformação começou. Garras surgiram nos meus dedos. Minha boca rasgou-se para acomodar os dentes brancos e brilhantes. Músculos poderosos recobriram os meus ossos. O animal selvagem despertou. O meu homem viu tudo com os olhos arregalados, em meio ao delírio da febre. Ele estava morrendo. Eu podia ver as sombras avançando sobre o seu corpo, transformando-o aos poucos em matéria sem vida. Já vira isso nos animais, mas era pior com os homens. Ele gritava, horrorizado com a morte próxima. Com as dores que o torturavam. Com a minha aparência. Então deitei-me, na minha forma de uma grande errante branca, sobre o seu peito maltratado. Sorri, mostrando os meus caninos. Naquele instante, todo o amor do universo estava dentro de mim.
Abocanhei o seu pescoço e apertei, rápido, as minhas mandíbulas. Ele agitou-se um pouco antes de aquietar-se para sempre.
Naquela noite, alimentei-me com a carne do meu homem. Consumi o seu corpo, trazendo-o para dentro do meu, cada gota do seu sangue, cada pedaço de seus músculos, nervos, tendões. Nada deixei para os vermes. Ao amanhecer, enterrei seus ossos longe dali, no limiar da mata. E uivei. Um uivo meio animal, meio humano, como jamais fora ouvido. O meu lamento correu pela floresta, percorreu os campos e ecoou nos ouvidos dos homens, que choraram, embora não soubessem o porquê.
Voltei para a mata e para os meus filhotes. Jovens errantes que vão crescer e vaguear entre os homens uma vez a cada mês, quando a grande cara branca surgir no céu. Talvez eu os ensine a nunca se aproximarem dos homens. O ser humano é o grande predador. Perto dele, nós, os errantes, somos um nada. Comemos a carne e lambemos o sangue. Mas o homem... Ah, ele toma a alma!
O conto “Luna Errante” faz parte da coletânea “A Dama-Morcega” (Landy Editora, 2006).
Primeiro Workshop do Escrevivendo
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