Primeiro Workshop do Escrevivendo

Primeiro Workshop do Escrevivendo
Foi com sucesso que a Casa Das Rosas apresentou o workshop sobre o projeto Escrevivendo. Quem foi, adorou!

sábado, 4 de abril de 2009

Lista de convidados para o Grande Baile na Casa das Rosas

Amiox e Nara; Dama Rosada e Do Carmo; Zibelina e Pedro; Gororoba e Sandra; Akila e Selda; Os & Esses e Fabiana; Svan & Ronaldo e Bruna; Cracochis e Ceres; Anjo Extraviado e Concha; Deus e Tiago; Benê e Sentirílio; Homus Melodius e Júlio.

Estarão presentes Livro e Dentinho? Os seres poéticos virão? E os assustadores?

Por favor confirmem sua presença e de seus convidados para o Grande Baile!

quarta-feira, 1 de abril de 2009

TERROR EM GERMINADE J. Modesto

O que tenho a dizer talvez não seja de fácil compreensão ou aceitação, para um ouvinte comum. Muitos, certamente, acreditarão que o que irei relatar não passa de uma fantástica alucinação de um maluco, aprisionado em uma ala psiquiátrica. Outros dirão que minha narrativa não passa de uma história criada para assustar crianças desobedientes. Muitos poucos, realmente, acreditarão no que relatarei.

Meu nome é Jeremias Carneiro e, desde minha infância tenho sido um sonhador, adjetivo utilizado por meus pais para, em muitas ocasiões, justificar ou disfarçar as habilidades que possuo desde tenra idade e que, só recentemente, vim, a saber, tratar-se do que chamam de mediunidade.

Foi somente quando completei meus quinze anos, em plena adolescência, que compreendi, pelo menos parcialmente, o que significava possuir tal poder, que alguns chamam de Dom, e que para mim não passa de uma Maldição.Você gostaria de saber porque o considero uma Maldição? Pois bem, revelarei o que está ao alcance da minha compreensão e que, acredito, ser possível relatar, pois, acredito eu, que algumas coisas devam se conservar ocultas.

Minha aventura começou numa de minhas férias escolares, quando fui deixado aos cuidados de um dos meus tios, único irmão de meu pai, que morava numa pequena fazenda, na periferia do município de Germinade. Não sabe onde fica Germinade? Bem, na verdade você não é o único. Germinade é um pequeno município localizado a pouco mais de 200 quilômetros de Belo Horizonte, Capital do Estado de Minas Gerais. Se você procurar nos jornais da região, verá que o local, onde se localiza a cidade, é conhecida pelos estranhos fenômenos que por lá acontecem, até hoje.Como sei disso trancado aqui? É muito simples, meu amigo! Acompanho os acontecimentos através dos exemplares do “Gazeta de Germinade”, que recebo regularmente! Como consigo? Utilizando um pouco da minha grande capacidade de encenação, é claro! Convenci o psiquiatra responsável de que sou um caso muito especial, que poderá revolucionar a psiquiatria e, conseqüentemente, trazer-lhe fama e dinheiro. Como? Bem, isto é uma longa história que deixaremos para outro dia. Apenas é necessário saber que, utilizando-me te tal estratagema, convenci-o de que a leitura de tal periódico tem grande influência sobre meu comportamento. Uma inverdade, é claro, mas que o querido doutor não precisa saber. Mas voltemos a nossa história. Como disse, encontrava-me de férias na fazenda de meu tio e, como era inevitável, acabei tomando conhecimento, durante minhas incursões à cidade, dos estranhos fenômenos que aconteciam na região, em especial, à leste, durante a noite.A Leste de Germinade, as montanhas se tornavam abruptas, com vales e densas florestas, pouco exploradas pelos habitantes da região. Lá se podem encontrar inúmeras ravinas e trilhas estreitas, onde as árvores crescem sobre encostas rochosas e de inclinações surpreendentes. Na periferia de tal floresta, encontram-se encostas mais suaves e terrenos bem mais planos. E é num desses terrenos que se assentam fazendas antigas e com construções feitas em madeira ou pedras nativas.

Uma dessas fazendas é a que pertence ao meu tio e onde estava passando minhas férias, razão que explica minha incredulidade nas histórias que ouvia, pois, estando ali, nada vira que pudesse chamar de estranho. Contudo, numa tarde de sol escaldante, finalmente me deparei com algo que pude classificar, no mínimo, como inacreditável. Era época das frutas e das colheitas. As pêras e laranjas amadureciam lentamente e os pomares produziam como nunca antes. Os frutos alcançaram formas e tamanhos exuberantes e nasciam em tamanha abundância que meu tio, contentíssimo com a sua produção agrícola, precisou encomendar barris extras para acomodar toda a safra. Depois de vários anos de penúria e colheitas ruins, iria, finalmente, pagar todas as dívidas e ainda sobraria um dinheirinho pra aguardar. Neste dia, meu tio e seus dois filhos, meus primos, juntamente comigo, estavam colhendo laranjas, quando, de repente, o céu começou a ficar carregado de nuvens negras, que se moviam de forma estranha. O que quero dizer com “estranha”?

Todos nós já, algum dia de nossas vidas, deitamo-nos ao ar livre e ficamos admirando as nuvens do céu, não é verdade? Pois bem, em todas essas vezes sempre víamos elas se moverem lentamente, todas em conjunto, na mesma direção. Naquele dia, na fazenda de meu tio, as nuvens moviam-se de forma aleatória e independente, como se tivesse vontade própria. O céu foi escurecendo e pode-se ouvir o som de trovões ao longe, anunciando uma tempestade. Sem explicação, meu tio, como meus primos, pareceu apavorado e, aos gritos, correram em direção a casa, pedindo para que eu os acompanhasse. Meio atordoado com a surpreendente e estranha reação de meus familiares, não resisti e os acompanhei. Rapidamente chegamos aos fundos da casa onde Tio José puxou, com a ajuda de meus primos, uma grande lona que revelou, escondido por baixo, um alçapão, o qual dava acesso a uma espécie de porão por sob a casa. Tio José abriu, apressadamente, o alçapão pedindo que entrássemos o mais rápido possível. O pavor estampado em seu rosto era quase que palpável e, quando meus primos começaram a descer os degraus de madeira, dei uma última olhada ao redor. Minha visão pousou sobre a floresta onde vislumbrei uma estranha névoa, que se embrenhava por entre a vegetação e as montanhas, como uma serpente rastejante, rumando em nossa direção. O céu já havia assumido uma cor enegrecida e relâmpagos avermelhados, tal como sangue, começaram a cortar o firmamento. Era uma cena, ao mesmo tempo, maravilhosa e aterradora.

Fui tirado de minha letargia por um forte puxão de tio José que me fez descer até o sótão, juntamente com ele, e fechou as portas. No interior do recinto, pude ver com maior detalhe, os robustos ferrolhos, dobradiças e travas metálicas que foram acionadas, fechando a entrada, como se fosse impedir o ingresso de uma manada de elefantes descontrolados. A única lâmpada, pendurada pela própria fiação, no meio do teto, começou, estranhamente, a falhar e, ainda meio perdido na situação, vi meus primos apanharem duas lamparinas a querosene e acenderem, no exato momento em que a luz se apagou.

Os sons estranhos que se seguiram eram irreconhecíveis. Por mais que tentasse, não conseguia relacioná-los com nada que conhecia. Alguns sons eram facilmente identificáveis, sendo o mais nítido, o barulho do vento forte açoitando a casa sobre nós. Podíamos ouvir as janelas batendo fortemente, vidros sendo quebrados e os trovões ensurdecedores demonstrando todo o seu poder sonoro. Subitamente, a tempestade chegou, e com ela o silêncio. Apenas o barulho forte da água que descia do céu. Tentei dizer algo, mas fui silenciado com um gesto ríspido de meu tio que sussurrou, num tom suficiente para que apenas eu e meus primos o ouvíssemos. “Eles chegaram!”, foi à frase.

Não sei por quanto tempo perdurou aquele silêncio opressivo, mas posso te dizer que o sentimento de pavor reinante ali me deixara apreensivo e curioso. Não entendia o porque de tudo aquilo e confesso que cheguei a pensar que meu tio, juntamente com meus primos, havia enlouquecido, mas o que se seguiu fez-me repensar a situação.

O som de uma das portas da casa se abrindo foi ouvido, apesar do barulho da tempestade. Não me foi difícil saber qual das portas, pois o ranger que fora produzido permitiu a todos identificar como sendo a da entrada da cozinha.

Apreensivos e em silêncio, acompanhamos o som de passos, no pavimento acima. Não eram passos comuns. Eram fortes e produziam um som metálico. Seja o que for, era pesado o suficiente para fazer o piso de madeira ranger diante de sua passagem.

De repente ouvimos sons que pareciam sibilos iguais aos dos lagartos e cobras, facilmente encontrados na região, só que num tom bem mais alto. Outros passos surgiram, confirmando que havia mais de um, seja lá o que fosse.

Com o passar do tempo, a terrível conclusão que vinha, gradativamente, se instalando em minha mente confusa e relutante era fantástica demais para que fosse levada em consideração, mas era a que se solidificava. A impressão que tinha era a de que nunca mais iria contemplar a luz abençoada do dia e nem correria os olhos pelos montes e vales aprazíveis do mundo exterior. Como que por mágica, a esperança parecia ter partido sem que eu conseguisse entender o porquê.

Permanecemos em silêncio e movemo-nos o mínimo possível, por muito tempo. Não sei precisar o quanto, mas seja o quanto for, posso-lhe afirmar que pareceu-me uma eternidade. Entretanto, doutrinado pela força de minha juventude e racionalidade, não deixei de sentir uma grande satisfação de minha conduta desapaixonada, pois, apesar do clima tenso e apavorante, que certamente provocaria um colapso emocional em muitas pessoas, isso não me aconteceu. Lembro de examinar aquele singular aposento e sentir crescer a aversão que a visão da paisagem externa me causara, pouco antes de nos abrigarmos ali. Não saberia dizer-lhe, ao certo, o que temia ou me repugnava, mas alguma coisa em toda a atmosfera lembrava-me coisas hediondas. Comecei a vaguear, examinando tudo a minha volta, mas procurando manter o silêncio exigido por meu tio.

Aquela situação perdurou por tanto tempo que, vencidos pelo cansaço, acabamos por adormecer. Quando despertamos, já não mais se ouvia os estranhos sons de outrora. A tempestade havia parado e, como por encanto, o clima pesado e nefasto se dissipara.

Após um certo tempo escutando, com o ouvido colado à porta do alçapão, tio José pareceu dar-se por satisfeito e, dizendo “Eles se foram!”, abriu as trancas, deixando a passagem para o exterior, livre. Ao subir as escadas de madeira, jamais poderia imaginar o que meus olhos vislumbrariam poucos metros depois. De pé, ao lado de meus parentes, admirei a paisagem completamente inusitada que se mostrava a meus olhos. Espalhados pelos campos, podiam-se ver os esqueletos, perfeitos e imóveis, dos animais da fazenda, em pé, no local onde os mesmos deveriam, supostamente, estar quando os fenômenos começaram. Caminhando com cautela, pude verificar que nada vivo, além de nós quatro, foi encontrado na fazenda. Admirei-me com o fato de, no galinheiro, onde antes havia um galo premiado e quase uma dúzia de galinhas, agora restava, apenas, esqueletos em pé, tal qual encontramos nos pastos. Curioso, aproximei o dedo de um deles, sendo advertido por meu tio, tardiamente. Os ossos, instantaneamente, transformaram-se em pó, ao meu toque, tal qual os lendários vampiros quando expostos a luz do sol. Outra coisa que notei, fora a ausência de vidros. Todos haviam desaparecidos por completo, sem deixar qualquer indício de sua existência.

Questionando meu tio, que certamente sabia de mais coisa sobre o que acontecera do que havia dito, fui surpreendido com o silêncio e uma recusa velada em falar sobre o assunto. Foi neste instante que me recordei das histórias que ouvira, esparsamente, durante minha estadia na cidade. (pausa) Calma, meu amigo! Deixe-me tomar um pouco de água para umidificar a garganta seca, antes de continuar... (pausa)Bem! Onde parei mesmo?... Ah, sim!

As pessoas acreditavam que, durante essas estranhas tempestades, criaturas sobrenaturais desciam dos céus para a terra, espalhando a morte e a destruição. Nos relatos que ouvi, entre uma bebedeira e outra, tal crença pareceu-me enraizada na comunidade, pois, mesmo dominados pelo poder do álcool, seus narradores expunham histórias muito semelhantes umas com as outras.

Nos dias que se seguiram, impus árdua pesquisa, encontrando, com relativa facilidade, através de recortes de jornais e manuscritos antigos, relatos de outros casos estranhos ocorridos na região, em sua maioria, nas proximidades da misteriosa floresta, localizava-se, contigüamente, a fazenda de meu tio, o qual manteve silêncio até sua morte, alguns anos após o fato que estou lhe relatando. Apesar de, à época, ser uma pessoa cética e extremamente racional, não conseguia, através de minhas limitadas investigações, encontrar explicações plausíveis para os fatos que presenciei, muito pelo contrário. Quanto mais investigava, mais interrogações foram se acumulando.

O mais intrigante, além dos esqueletos dos animais mortos, era a existência de estranhas marcas disformes, no chão lamacento, as quais supus serem pegadas, bem como curiosos círculos nos campos, onde, em torno dos quais a grama desaparecera. Isto sem contar o fato das laranjas, somente as laranjas, ainda nos pés, estarem totalmente ressecadas, com aparência semelhante à maracujás maduros.

Dos relatos que encontrei, o mais antigo datava de 1830, donde conclui que tais fenômenos não eram recentes e obedeciam a uma certa periodicidade. Nas conversas que tive, posteriormente, com amigos, que cultivei em minha estadia, e meus primos, estes bem mais acessíveis em relação ao assunto que meu tio, tentei, de forma inútil, buscar explicações racionais para o ocorrido.

Por mais que encontrasse uma explicação aceitável para alguns dos fenômenos, sempre acabava perdendo a discussão quando eram mencionados os esqueletos. Por mais que tentasse, não conseguia explicar, de forma convincente, o que acontecera. Quando o dia final de minha estadia em Germinade chegou ainda possuía muitas perguntas sem respostas, respostas essas que perseguiria por quase toda a minha vida e que, por fim, acabaria por me conduzir até este abrigo em que agora me encontro, o qual muitos dão o nome de Manicômio.

Não me espanta, meu amigo, seu relato de que, novamente, tais acontecimentos estranhos estão se desenrolando naquela região. Quem sabe, agora, com os recursos e conhecimentos que tem à sua disposição, possa encontrar as respostas que me faltaram. Espero que De...

Julio Ramirez apertou um dos botões, fazendo a reprodução da gravação cessar. Já era a sétima vez em que ouvira aquele relato, procurando alguma informação que pudesse ser útil. Seu parceiro, Roberto De Falcon, observava, através de uma das janelas do pavimento superior, do prédio da delegacia de Germinade, o estranho fenômeno se desenvolvendo no horizonte. Aquela situação já perdurava quase três dias inteiros, sem que os especialistas conseguissem descobrir o que estava acontecendo. Nuvens carregadas, e de comportamento anormal, pairavam por sobre toda a região leste da cidade, local onde se localizava a floresta e a fazenda citada na gravação que tinham acabado de ouvir.

Apreensivo, Ramirez levantou-se e se aproximou do parceiro, passando, também, a observar o apavorante comportamento da mãe natureza. Um calafrio percorreu-lhe a espinha quando, em meio ao céu enegrecido, ouviu-se o estrondo de poderosos trovões, fazendo-o lembrar-se das experiências desagradáveis que a dupla tivera com o chamado Sobrenatural, mas que, de forma nenhuma, aproximava-se da grandiosidade daquilo que se movia no céu de Germinade. De Falcon suspirou, inconscientemente, e Ramirez, sentindo os pelos da nuca se eriçarem, pressentiu algo ruim e extremamente maléfico, sobre o ambiente, enquanto relâmpagos avermelhados cortavam o ar. De fato, aquilo lhe dava a certeza de que Jeremias Carneiro estava de posse de seu juízo perfeito. Cruzando as ruas desertas da cidade, os dois puderam vislumbrar o comboio militar que se dirigia ao encontro do inexplicável. Gotas de chuva começaram a cair sobre a cidade, chocando-se contra o parapeito da janela da delegacia. Ramirez, imediatamente, percebeu que algo estava errado. As gotas de água estavam diferentes, possuíam uma cor inusitada. Eram vermelhas, vermelhas como os fortes e luminosos Relâmpagos de Sangue. Sem sombra de dúvidas, o Fim do Mundo estava chegando e a porta de entrada chamava-se Germinade.

Luna Errante - Giulia Moon

Sim, sou uma errante. Viajo na normalidade entre os ciclos lunares. Mas mergulho num poço escuro e incômodo durante alguns dias do mês, como a menstruação feminina. É quando me ergo sobre duas pernas e ando como os humanos. Estranho mundo, o deles. Era para lá que eu ia nos períodos em que a mutação me permitia cruzar o limite entre a besta e o homem, o grande predador. Perto dele, eu e os outros bichos éramos um nada. Comemos a carne e lambemos o sangue. Mas o homem toma a alma.
Eu me cobria com um vestido de algodão azul e penteava os longos cabelos negros quando a hora da mutação chegava. Depois ficava na beira da estrada, esperando o primeiro homem se aproximar. O cheiro de sexo permanecia impregnado nos meus pêlos, os poucos que sobravam depois da mutação. Logo os humanos chegavam, olhando de lado e atentando para tudo ao redor. A minha aparência os agradava. Eram ariscos. Matreiros. Pegavam na minha mão, diziam coisas com a voz suave. Traziam doces que compravam na vendinha da beira da estrada. Gostavam de passar os dedos entre os meus cabelos. Queriam beijar. Em troca, compravam a carne de que gosto. Arranjavam a cerveja que eu bebericava, morna. Fazíamos sexo. Depois, iam embora para nunca mais voltar.
Faz um tempo, encontrei um homem diferente. Ele tinha olhos de um negror intenso, como as noites de lua nova na floresta. A pele tinha a cor dos doces que chamam de pé-de-moleque. Era bom o seu cheiro de suor. Mordi as suas costas e lambi a sua mão. Ele riu e me chamou de nomes. Alguns, ternos, outros, cheios de malícia e desejo. Eu, que nada possuía, chamei-o apenas de meu. Meu homem. Aninhei-me sobre o sol glorioso que ele trazia tatuado no peito. Em seus braços, dormi uma noite inteira sem sonhar com a mata, o barulho da água do riacho e dos bichos da floresta. Ele falou-me dos seus desejos. Do amanhã e do depois de amanhã. Falou de partir para uma vida além da estrada, para a cidade grande, onde meus olhos não podiam alcançar. Pegou a minha mão e a beijou. Por ele, eu quase esqueci que era uma errante e que a hora de partir ia chegar, um dia.
Como sempre, o ciclo mensal acabou junto com a lua cheia. Pela primeira vez, chorei quando as minhas quatro patas voltaram a tocar no chão. Deixei o meu homem. E voltei para a floresta.
Do meu esconderijo, ouvi-o chamar por mim. Durante dias, senti a sua presença na parte menos densa da mata, rondando e procurando. Uivava como um animal doente. Suplicava pela volta do amor perdido. Mas pouco a pouco o seu cheiro foi se tornando mais fraco, até desaparecer por completo entre o odor das folhas ao vento, dos insetos e da chuva. E eu voltei a correr pela mata à noite, junto com outros irmãos selvagens. Eles não eram errantes como eu. Não se entristeciam com a lembrança do sol tatuado num peito moreno. Não tinham saudades de algo que não voltava mais.
Não retornei à estrada nas noites de lua cheia. Embrenhei-me mais e mais fundo na floresta. Fiquei muito tempo sem me aproximar dos homens. Acasalei-me com um grande lobo vermelho e fiquei prenha. Nasceram sete pequenos errantes como eu.
No entanto, eu não alcançava a paz, a noite bem dormida, o prazer de correr na escuridão sem luar. A imagem nebulosa do homem da pele cor de terra assombrava a minha mente. Fazia a minha alma doer. Foi por isso que, mais uma vez, resolvi colocar o vestido azul, já roto e gasto pelo tempo, e caminhar com os dois pés até a estrada dos homens.
A paisagem mudara. Havia muitos carros, as minhas narinas ressentiam-se da fumaça que expeliam. A vendinha na beira da estrada continuava ali, cheia como sempre. Eu estava assustada. Havia perdido a familiaridade com os homens, seus objetos, sua língua. Mas queria, acima de tudo, reencontrar o meu homem. Enchi-me de coragem e me aproximei da porta estreita e iluminada. Entrei no espaço apertado e caminhei entre velhas mesinhas de metal.
O cheiro de urina velha pairava no ar, misturado com odores de cerveja, cachaça e fritura. Logo as conversas cessaram. Olhos hostis me observavam, atentos. Eu farejava o ar com ansiedade. Procurava pelo cheiro dele. Não. O meu homem não estava por perto. Fiquei com medo. E se ele houvesse partido para longe? Para a cidade além do horizonte? Machos cheios de desejo se cutucavam uns aos outros. A minha roupa em farrapos os incomodava. O meu corpo vigoroso e saudável os excitava. Um deles grunhiu algo na minha direção. Depois um outro. Começaram a se levantar devagar, os olhos fixos em mim.
Então, um homem velho se ergueu e disse algo em minha defesa, acalmando-os. Mas aquele que falara primeiro continuava disposto a me atacar. Ele saiu do seu canto e avançou na minha direção, mas o velho acertou-o com a bengala, abrindo uma fenda na sua testa. O sangue jorrou, abrindo o dique que continha os ânimos. Os amigos do ferido arremeteram e surraram o homem velho, apesar das minhas súplicas. Quando a noite terminou, eu estava na sarjeta, mergulhada numa poça de lama, sangue e lixo. Ao meu lado, jazia o velho ferido. No seu peito, sob a camisa entreaberta, havia um sol tatuado, quase apagado. Eu havia reencontrado o meu homem. Antes, só sentia o forte odor da cachaça. Agora, no seu sangue, eu percebia um resquício do cheiro antigo, saudoso, do homem viril que já não existia mais. O tempo havia passado muito rápido para ele. Aprendi que o tempo para os errantes andava mais devagar.
Recolhi o meu homem, envelhecido e doente, e o levei até o seu barraco humilde. Ele não me reconheceu em nenhum momento, para ele eu era apenas uma prostituta grata pelo seu último gesto de cavalheiro. Meu pobre homem. Seus dentes estavam podres e fracos. Sua pele flácida era seca como um pano velho. Uma doença ruim corroía o seu estômago e o atormentava com fortes dores. Ele admitiu, sorrindo com a boca ferida, que estava à beira da morte. Jamais deixara a estrada e o seu lugar na mesa da vendinha, onde prestava pequenos serviços durante o dia e passava as noites bebendo. O sonho de conquistar o futuro e partir para a cidade grande havia murchado junto com seu corpo.
No segundo dia, o meu homem teve uma surpresa. Fui até a sua cama e enfiei-me sob as cobertas. Sorri ao notar num homem tão velho um resto de pudor ao expor-se para uma mulher jovem. Mas ele entendeu que eu o queria. E que ele merecia o meu querer. Aceitou as minhas carícias, enternecido. Em alguns momentos quedou-se, pensativo, talvez tocado por alguma lembrança remota de uma outra mulher que amou. Uma mulher de vestido azul de algodão que desapareceu certa noite, junto com a lua cheia. Bebemos cerveja. Ofereci-lhe comida, que arranjei com outros homens na estrada. Depois ele adormeceu, feliz.
No terceiro dia conversamos até o sol se pôr. O meu homem estava alegre, queria sair daquele lugarejo, partir para onde os olhos não alcançavam, recomeçar a sua vida. Mas as dores que o prostravam diziam que não, que ele não duraria mais do que algumas poucas horas. E a cara branca no céu diminuía, avisando que já era hora de uma errante voltar para a floresta. Eu precisava partir. O tempo passava rápido para nós dois.
Mas não fui embora. Permaneci ao seu lado. Durante a madrugada, a transformação começou. Garras surgiram nos meus dedos. Minha boca rasgou-se para acomodar os dentes brancos e brilhantes. Músculos poderosos recobriram os meus ossos. O animal selvagem despertou. O meu homem viu tudo com os olhos arregalados, em meio ao delírio da febre. Ele estava morrendo. Eu podia ver as sombras avançando sobre o seu corpo, transformando-o aos poucos em matéria sem vida. Já vira isso nos animais, mas era pior com os homens. Ele gritava, horrorizado com a morte próxima. Com as dores que o torturavam. Com a minha aparência. Então deitei-me, na minha forma de uma grande errante branca, sobre o seu peito maltratado. Sorri, mostrando os meus caninos. Naquele instante, todo o amor do universo estava dentro de mim.
Abocanhei o seu pescoço e apertei, rápido, as minhas mandíbulas. Ele agitou-se um pouco antes de aquietar-se para sempre.
Naquela noite, alimentei-me com a carne do meu homem. Consumi o seu corpo, trazendo-o para dentro do meu, cada gota do seu sangue, cada pedaço de seus músculos, nervos, tendões. Nada deixei para os vermes. Ao amanhecer, enterrei seus ossos longe dali, no limiar da mata. E uivei. Um uivo meio animal, meio humano, como jamais fora ouvido. O meu lamento correu pela floresta, percorreu os campos e ecoou nos ouvidos dos homens, que choraram, embora não soubessem o porquê.
Voltei para a mata e para os meus filhotes. Jovens errantes que vão crescer e vaguear entre os homens uma vez a cada mês, quando a grande cara branca surgir no céu. Talvez eu os ensine a nunca se aproximarem dos homens. O ser humano é o grande predador. Perto dele, nós, os errantes, somos um nada. Comemos a carne e lambemos o sangue. Mas o homem... Ah, ele toma a alma!

O conto “Luna Errante” faz parte da coletânea “A Dama-Morcega” (Landy Editora, 2006).