Primeiro Workshop do Escrevivendo

Primeiro Workshop do Escrevivendo
Foi com sucesso que a Casa Das Rosas apresentou o workshop sobre o projeto Escrevivendo. Quem foi, adorou!

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Krakosh

KRAKOSH - Ceres de Almeida

Helena leu o conto a alunos. O personagem foi com ela a casa. Quarenta anos, namorava Ruben, músico. Sentou-se na varanda, naquele fim de tarde de abril. Rabiscou aquele ser, imaginando-o diante dela. Ouviu um farfalhar de folhas de alguma árvore. O gato miou, pedindo atenção. Helena deitou-se no sofá, cobriu-se com uma colcha leve de patchwork, presente da filha. Fechou os olhos querendo conhecer melhor sua criatura. Cinza. Delineou-se uma figura. Sentiu o gato aconchegar-se no espaço entre os pés e o sofá. Colocara o fone na secretária eletrônica; o porteiro já entregara a correspondência do dia. Com o vizinho viajando, nada de ruídos que a interrompessem.
Pensamentos saltavam: “lavar algumas peças de roupa, panelas sujas na cozinha, ruído de carros na rua. Voltou à cor cinza sem forma. Viu-se dentro dela, a grande velocidade. Tudo se tornou amarelo. Deserto. Dunas, contornos arredondados. Vento em redemoinho levantando areia. “O vento move montanhas!” Lembrou-se das citações bíblicas, sobre mover montanhas pela fé, algo mágico em sua fantasia infantil. -“ Move-se montanha aos poucos! ” Ia de momentos de imaginação solta aos pensamentos habituais. Levantou-se, lavou a louça, preparou roupa para ser lavada. Seguia um ritual conhecido.
“-Os ventos modificam o relevo de dunas mudando-as de lugar. Modela rochas pela fricção da poeira de areia que lança em sua direção”. Juntava elementos, cozendo-os num todo, como a manta de patchwork. Recordou-se de esculturas naturais exóticas dos arcos rochosos em Utah. As cortinas balançaram com a brisa e Mingau escondeu-se embaixo do sofá.
Dera a ele o nome de Krakosh, sem pensar. O som lembrava rocha que se quebra, talvez pelo trabalho erosivo do vento. Rocha leve, desfeita em partículas, montanha que se move no ar. Leu novamente o conto.
“Krakosh parece ser feito de rocha, dizem que é filho da terra com o ar. Da mãe herdou o corpo, não é grande nem pequeno, nem alto nem baixo. Do pai, o jeito de flutuar de lá para cá e para acolá. Krakosh tem a leveza da pluma e a força da rocha. Parece um galho de árvore antiga, delgado, que se abre numa pequena copa de galhos mais finos. Em cada ponta destas partes tem uma espécie de circunferência colorida, dizem ser herança do Arco-Íris, parece pedra preciosa , brilhante e facetada. São olhos de Krakosh. Dizem também que pode enxergar de dia e de noite. Mas o que vê é um momento apenas, pois vive flutuando como o vento, sempre mudando de lugar. Visita muitas terras sem se deter em nenhuma. Dizem que traz sorte aos infelizes e desencantados, inspiração aos poetas.
Krakosh é cinza no corpo, com olhos coloridos. Quando passa por tormentas se confunde com a cor cinza dos temporais, com a neblina das manhãs de inverno, fica completamente invisível ao adormecer, no meio das chuvas, das brumas. Solta sons, que nascem do vento. Dizem que fala quando a brisa passa, ruge quando a ventania muda o rumo das nuvens. Nunca se viu um krakosh com outro krakosh. Dizem que eles se encontram no alto de altas montanhas, desconhecidas pelos humanos, ou em profundas cavernas. É quando param por séculos, alimentam-se das fontes e dos metais, para começarem nova jornada através das brisas e dos ventos. Em tempos de calmaria descansam em florestas ou no alto de algum edifício das cidades. Já foram confundidos com ovnis por olhos de camponeses, quase ocultos aos olhos das pessoas das grandes cidades, tão cheias de luzes e contradições. Dizem que se alguém silenciar o coração, poderá, quem sabe, ouvir o canto de um krakosh. E ouvindo, se encantará com o mais simples ato e fato. Dizem também que são capazes de mover montanhas, e que alguns profetas se inspiraram em seus poderes para criarem sermões de fé.”
Eram muitos reunidos naquele vale nas alturas. Eram um só, trama de dramas. Ali zuniam trocando sons, como se a voz das montanhas resolvesse contar tudo de séculos num só instante. A extremidade de seus corpos estava ligada a outras extremidades de outros corpos, os círculos coloridos com círculos coloridos, plugados. Uma imensa rede se formava no fundo cinzento. Criavam a Memória dos Acontecimentos Cambiantes, volátil e flúida como a própria natureza humana. Eram a rede. Receptores e transmissores incansáveis formavam e transformavam imagens visuais, sonoras, virtuais, na velocidade da luz. Nada era certo e nada era errado. Era, apenas. Imediatamente comunicado, drama de tramas, nem mais, nem menos que possibilidades quase infinitas de combinação de dados.
Deitada, Helena lembrava-se da conversa com Ruben a respeito da obra aberta. O convite a “fazer” a obra com o autor, pondo-a em movimento onde o risco atiça o traçado contínuo. Lembrou-se de Bartók, compositor húngaro, e os exercícios propostos: a posição dos dedos, tradicionalmente colocados numa certa sequência ao tocar as teclas de um piano, propositalmente deslocados a outra sequência, desfazendo hábito, abrindo nova combinação. Ruben admirava a capacidade de Bartók, de se libertar de tonalidades tradicionais, para voltar para elas em seguida. Aquela audácia, saber, ousar, querer, em suas várias combinações: ousar saber, querer ousar, saber ousar. A vida como obra aberta, dar espaço à ousadia da criação. Via-se repetindo pensamento conhecido. Em suas idas e vindas, queria ser tocada pelo novo.
No alto das montanhas, num ambiente cinzento, os krakosh continuavam o trabalho incessante de conexões. De vez em quando, muito de vez em quando havia mudança de posições, deslocamentos mais radicais. Um zunido contínuo fazia daquela atmosfera de trabalho, algo de efeito hipnótico. Alimentavam-se de água, minerais, oxigênio e substâncias que circulavam pela rede de corpos que se conectavam, num incessante jogo de troca de informações. Não tinham nome específico na tarefa de absorção-transmissão. Uma luz, muito tênue, muito de vez em quando, se anunciava timidamente entre as montanhas, prenúncio de mudança de posições, descanso, recolhimento, para que outras equipes entrassem em cena. Muitos deles estavam enfadados pela repetição dos mesmos circuitos, das mesmas informações, das imagens que teimavam em se repetir. Raramente algo novo se configurava. Circulavam por reinos, quase não eram vistos, iam com o vento das correntes. Dizem que encantavam poetas e desesperançados, anunciavam novas possibilidades aos exaustos. Eram considerados descendentes de Mercúrio, o deus mensageiro. Magos, talvez.
Helena foi à varanda, gostou da brisa de outono, deu ração ao gato, tomou um banho quente, entregou-se novamente à imaginação. Como era difícil sair da mesmice. Observava os movimentos da mente, mergulhada na correnteza de pensamentos recorrentes. Voltava a nadar até a margem, observadora de si. Quando afundava no rio de idéias e emoções de sempre, atolava-se em velhas histórias, e, sonâmbula, andava pelas ruas, dava aulas, fazia compras, conversava com as gentes. Era dificílimo despertar. Sabia-se sonhando acordada.
Viu-se num vale cinzento, cheio de volteios entre rochas e desfiladeiros maciços. Era pequena diante de tamanho volume. Caminhava com cuidado, atenta a cada passo. Um zumbido vinha detrás da rocha maior. Deu-se o rumo, acelerou-se o passo e o som. Veio a neblina, confundindo contornos. Algo roçou em sua cabeça. Uma espécie de casca de árvore, leve, cinza. Soltou-se no ar, como um pássaro a planar, desaparecendo na bruma.
Zumbido constante, monotonia cromática a absorviam por completo, impedindo qualquer movimento de pensamento que a tirasse do agora. Seguia o vôo dos estranhos gravetos, guiada pelo som que parecia aumentar a cada passada. Não conseguia articular idéias. Estava atenta, seguia em frente, sem por quê nem para quê. Começava a fazer parte daquilo tudo, estranha comunhão. Nem pensamento, nem propósito a guiavam. Ia com o vento, nada mais. A luz intensa eclipsava diferenças. Estava entre eles. Com este pensamento tudo se apagou. Escuridão total. Apenas o nada, sem som nem forma. Ela era nada. Era o som. Flutuava como pluma, imagens rodavam ao redor, tudo via, sem se deter em nada. Pairava sobre um ponto alto de um aglomerado de imagens que acreditava ser uma cidade. Seguia o vento, quase sem ser vista. Alguns poetas e desesperançados sentiam-se visitados pelo novo. Virou dunas, brumas, rodopiou em ventos de areia, desapareceu na chuva ao fechar seus inúmeros sensores. Do alto das montanhas mais altas seguia a luz circular, era tudo e nada, era som, imagem, escuridão. Dissolveu-se na luz despertando-se Helena, no meio da madrugada, com o miado do gato pedindo comida. Circulou mundos, pairando na atmosfera cinzenta do alto de sua cabeça, onde neurônios, desfazendo conexões, recolhiam-se para se alimentarem das fontes, dos metais, dos momentos sem sonho.

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